Quando comecei a ler “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, achei que encontraria apenas um romance sobre o sertão. Mas não. Logo percebi que estava diante de algo muito maior: um mapa poético e filosófico do Brasil. Mais do que uma história, essa obra me atravessou como uma revelação sobre quem somos, de onde viemos e, talvez, até para onde estamos indo como povo e como nação.
Não é só um livro. É um convite a atravessar veredas internas, questionar certezas, desafiar a própria linguagem e olhar de forma mais generosa — e mais crítica — para as contradições brasileiras. E posso afirmar, com convicção, que depois dele, eu nunca mais enxerguei o Brasil do mesmo jeito.
O sertão como espelho do Brasil
O Brasil invisível revelado nas veredas
Ao mergulhar na narrativa de Riobaldo, percebi que o sertão não é apenas um cenário físico. Ele é, antes de tudo, um espaço simbólico, onde se revelam as complexidades, as dores, as belezas e os desafios do Brasil real — aquele que muitas vezes não aparece nas capas de revistas ou nas telas das grandes cidades.
O sertão é uma metáfora poderosa do Brasil invisível. Aquele que resiste às margens dos centros urbanos, que sobrevive em meio às adversidades, que preserva saberes ancestrais e que, ao mesmo tempo, enfrenta as mazelas do abandono, da violência e da desigualdade.
As contradições do país em cada página
A genialidade de Guimarães Rosa está em escancarar as contradições que estruturam o Brasil. Ao longo da narrativa, fica claro que o país é construído em cima de dicotomias: civilização e barbárie, tradição e modernidade, fé e violência, amor e morte.
O sertão, assim como o Brasil, é território de dualidades. E esse espelho me fez enxergar que muitas das tensões sociais, culturais e políticas que vivemos hoje não são novas. São heranças, são raízes profundas fincadas na nossa própria formação enquanto nação.
O sertão não está só no mapa, está em nós
O impacto foi tão grande que comecei a perceber que o sertão não é só aquele pedaço de chão seco e distante. O sertão é também a periferia, é a Amazônia, é o interior esquecido, é o nordeste resiliente, é o sul rural. O sertão está em todos os lugares onde a vida pulsa, apesar de.
Mais do que isso: o sertão também mora dentro da gente. É aquele espaço interno de resistência, de dilemas, de batalhas diárias — seja para sobreviver, seja para compreender o mundo, seja para encontrar sentido na própria existência.
A linguagem como chave para entender o Brasil

A língua de Rosa como patrimônio cultural
Ler Grande Sertão: Veredas é, antes de tudo, um exercício de reaprendizagem da própria língua. Guimarães Rosa não escreve apenas. Ele reinventa, molda, torce, expande o português de um jeito que, de início, parece estranho — mas logo se revela libertador.
Percebi que a língua é, também, uma trincheira de resistência cultural. A fala sertaneja, os neologismos, os ditos populares, as construções poéticas não são meras firulas estéticas. São formas de afirmar uma identidade linguística que se recusa a ser padronizada, que celebra a diversidade, que carrega nas palavras a própria história de um povo.
Quando entender deixa de ser literal e vira sentir
No começo, confesso: fiquei perdido. Voltei páginas, reli parágrafos, busquei palavras que nem sabia se existiam. E aí veio o clique: Grande Sertão não é para ser entendido no sentido convencional — é para ser sentido.
É uma leitura que obriga a desacelerar. Que te força a ouvir o som das palavras, a entender os silêncios, as pausas, os ritmos. A linguagem se torna quase música, quase oração. E, nesse processo, você percebe que o português do sertão é tão legítimo, tão belo e tão potente quanto qualquer outra variante da nossa língua.
A língua como resistência, identidade e futuro
Após atravessar essa experiência linguística, nunca mais consegui olhar para sotaques, gírias ou variações da fala popular da mesma forma. Passei a entender que cada “errado” carrega, na verdade, uma história, uma resistência, uma afirmação de quem somos.
Se tentam nos convencer de que falar certo é falar como manda a gramática, Rosa nos mostra que falar certo é falar como o povo fala — e, mais do que isso, é transformar a palavra em potência, em arte, em manifesto.
Lições de humanidade, brasilidade e existência
O bem, o mal e a travessia humana no sertão e no Brasil
O grande dilema existencial de Riobaldo é, talvez, o grande dilema de qualquer brasileiro — e de qualquer ser humano: afinal, o diabo existe? O mal é uma entidade externa, ou somos nós que o criamos, todos os dias, em nossas escolhas?
Essa reflexão me atravessou profundamente. Porque, olhando para o Brasil, percebo que convivemos diariamente com formas concretas do mal: a fome, a miséria, a desigualdade, a violência, a corrupção. Mas, ao mesmo tempo, vejo no Brasil um povo que resiste, que se reinventa, que cultiva solidariedade, que ama, que cuida.
O bem e o mal não estão separados. Eles coexistem. E, assim como Riobaldo, cada brasileiro precisa fazer suas escolhas diariamente. E cada escolha carrega consequências que desenham o nosso futuro.
O amor como eixo de transformação
No meio desse sertão árido — real e simbólico —, há uma semente que insiste em germinar: o amor. E aqui, Guimarães Rosa nos entrega uma das histórias de amor mais lindas e mais complexas da literatura universal: o amor de Riobaldo por Diadorim.
Esse amor transcende gênero, transcende norma, transcende tudo o que é imposto. É amor como afeto, como conexão, como resistência. E entender isso me fez refletir sobre quantas vezes, no Brasil, o amor é também um ato político. Amar, em um país marcado por tantas dores, é um gesto radical. Amar é insistir na possibilidade de um futuro.
A travessia como destino coletivo
Se há uma grande lição que levo de Grande Sertão: Veredas, é que a vida é travessia. E que o sertão — com seus desafios, suas belezas, seus mistérios — é metáfora da própria existência.
O Brasil, como nação, também está em travessia. Estamos no meio das veredas, buscando nossos caminhos, tentando entender quem somos, para onde vamos e que tipo de país queremos ser.
E talvez seja essa a grande mensagem de Rosa: não há um caminho único. O caminho se faz na travessia. E, no meio das veredas, o que nos salva são os afetos, a solidariedade, a coragem e a palavra.
Ler Grande Sertão: Veredas foi, sem dúvida, uma das experiências mais transformadoras da minha vida. A obra me ensinou que o sertão não é um lugar, mas um estado de espírito. Que o Brasil não é um país simples, mas uma colcha de retalhos complexa, vibrante, cheia de dores e de belezas.
Aprendi que a língua é mais do que comunicação — é identidade, é resistência, é memória viva. E que o amor, em todas as suas formas, é o que nos permite seguir atravessando as veredas da existência, mesmo quando tudo parece árido.
Depois de Guimarães Rosa, nunca mais enxerguei o Brasil — nem a mim mesmo — do mesmo jeito. E, se você me permite um conselho: permita-se essa travessia. Porque, do outro lado, há sempre mais Brasil — e mais de você mesmo — esperando para ser descoberto.
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